Saturday, February 20, 2021

Uma capivara que nasceu errado outro divertimento - Uma capivara que nasceu errado tenta subir escadas e não consegue. Um senhor de cabelos brancos quase inexistentes fumaçando uma cabeça de crânio denunciado está sentado num café do outro lado da rua, batendo a colherinha na sua xícara. Ele se vê estranhamente detido pela cena, pelos membros mal encaixados da capivara e sua protelada dificuldade. Fica tão comovido que decide levá-la para casa, ensiná-la a subir escadas e ‘poder assim participar integralmente dos movimentos do mundo’. No jantar, percebe que as suas limitações alcançam outras esferas, que a capivara tem dificuldades infinitas ao endereçar o mundo, empacada em todas as direções, de todas as disponíveis maneiras. Ela não sabe trocar lâmpadas, conversar com estranhos, interpretar o impacto político de filmes na esfera pública, cancelar assinatura de TV a cabo ou rejeitar as solicitações do telemarketing. É tudo mesmo muito difícil. O homem prorrompe em compaixão. Põe a capivara para dormir num composto de almofadas no chão da sala e passa a noite bebendo gin no escuro, chorando silenciosamente e considerando a gravidade de seu recém-revelado chamado. No dia seguinte estabelece uma série de exercícios cruciais. Ensina a capivara como se faz café, como se dá nó na gravata, como se pede comida em diversos tipos diferentes de estabelecimentos de comércio de alimentos. A lontra tenta comer a borra do café no filtro, chora ao falar com o garçom, quase se enforca com a gravata, etc. É tudo muito divertido. O homem se preocupa, a capivara passa a morar com ele, saindo de casa apenas para ir trabalhar como guardinha noturno numa loja de eletrodomésticos. O trabalho envolve manter uma expressão atenta (o que ela quase consegue) e fazer percursos ociosos pelas dependências da loja, seria todo tranquilo não fosse pelo medo de invasores. A capivara não consegue nem imaginar a motivação necessária para tanto esforço, para sair de casa com caminhonete, cordas, roldanas e armas, usar de violência ou grave ameaça, quebrar vidros, carregar geladeiras, tudo tão difícil! E tudo para poder refrigerar alimentos ou secar roupas! Sentado no seu tamborete, ela admira a industriosidade concentrada dos eletrodomésticos, inveja a sua capacidade sintetizada de realizar tarefas. Eles todos zumbindo o funcionamento de suas maquinarias escondidas, calmamente realizando suas funções, enquanto ela não consegue, cai por aí, se choca com transeuntes, mastiga termômetros, perde vários dedos do pé em incêndios parcialmente provocados por sua inépcia com materiais nem tão inflamáveis assim! Os exercícios são invariavelmente infrutíferos, mas o homem não desiste, fica acordado diversas noites lendo artigos científicos que não entende e pensando em como diabos redimir a inadequação total e derradeira da capivara . Ela não parece jamais ter se encaixado apropriadamente em nenhuma circunstância. Quase como se contivesse uma disposição negativa diante dos elementos, algo entranhado que sempre acionasse a resposta errada. Ele pensa isso no escuro enquanto a capivara se debate dormindo, no chão, seu sono tumultuado por zíperes, formulários, parágrafos de historiadores alemães, catástrofes marítimas enormes causadas por ela, frotas inteiras afundando num mar escuro. A melhor solução que ele consegue projetar é a de um livro, um Manual definitivo de procedimentos onde toda atividade concebivelmente necessária seria didaticamente enovelada. Como se fazer Bouef Bourguignon. Como se determinar politicamente. Como se portar diante de diferentes práticas religiosas. Como escolher um carro com a melhor relação custo-benefício. Como se prantear os mortos. Depois da primeira noite de trabalho o arquivo do Word já contém trinta e quatro páginas. Dessa maneira, em poucos meses ele teria milhares delas! Ele esconde da capivara a confecção do manual, pretendendo fazer uma surpresa no seu aniversário (em junho próximo). Depois de duas semanas, o manual não passa perto de uma conclusão - nem mesmo de uma delimitação aproximada de seus limites - apenas se espraia adiante indefinidamente, ramificando-se como dedos d’água, obsessivo e progressivamente específico. Como demonstrar respeitabilidade diante de um grupo de velhinhas assustadas no elevador. Como se esgueirar para atrás do móvel da televisão para ligar os cabos do DVD sem que nada seja derrubado. Como expressar resignação diante das críticas veladas feitas pelo seu sogro a respeito da educação que você dá ao seu filho. Como julgar a trajetória musical de David Bowie a partir dos anos oitenta. A minúcia dos encadeamentos procedimentais começa a assustá-lo em sua complexidade, o arquivo primeiro de texto abandonado por rascunhos gráficos arvorados, fluxogramas enormes interminavelmente relacionados, cada item abrindo-se em novos e ultrajantes sistemas. O homem percebe num sonho epifânico grandioso conduzido por David Caruso que o que ele está fazendo é programar a lontra. Olha que merda. Ele não sabe muito de computação, nem de nada parecido, mas a analogia lhe parece apta. E agora as noites que ele não passa em claro detalhado ou planejando novos segmentos e capítulos ele passa acordado preocupado com a capacidade cognitiva da capivara de processar todos aqueles textos e realizar aquelas operações de maneira satisfatória. Essa preocupação, embora ainda distante de ser resolvida, é por sua vez substituída por uma segunda preocupação, se a capivara, mesmo que consiga atingir um estado óptimo de realização de todos aqueles procedimentos (o que parece altamente improvável), seria capaz de realmente entender o que estava fazendo, e extrair das circunstâncias executadas experiências devidamente sentidas e realizadas, preenchidas, completas. Ele pensa em incluir nos procedimentos um tipo de educação pessoal e sentimental que se certificasse desse resultado, mas as implicações práticas disso quase derretem sua cabeça. É tudo mesmo muito difícil. A capivara ofende a filha do embaixador, cria incidentes diplomáticos, estoura crises econômicas em diversos países emergentes. O homem não mais dorme, as mãos aprestadas à cabeça, arcobotantes tensos pressionando pele nas têmporas, suando. Diante dele as páginas e páginas do manual, sua impossibilidade grosseira. Enquanto na cozinha a capivara derruba a mesa, açucareiro, colheres, maçãs, copos comemorativos de cerâmica, encosto, pires, a cadeira na qual estava sentada, quebrando a bacia, rasgando tecidos diversos e potencialmente comprometendo o funcionamento de uma série de estruturas vitais. No quarto, o homem recebe o prolongado barulho de catástrofe com uma espécie de alívio. Permanece quieto na cama. Sonha com um musical formidável dançado por capivaras esguias e elegantes, arranjos complexos e simbolicamente elaborados dançados à perfeição por um composto quase orgânico de centenas delas, todas de fraque, inexpressivas, seus bracinhos seguindo ondulações seccionadas.
O artigo da wikipédia sobre si mesmo - O artigo da wikipédia sobre si mesmo é um artigo da wikipédia sobre si mesmo¹. Ele constitui sua existência a partir da viabilidade formal e necessidade lógica que deriva das premissas e da estrutura da Wikipédia ("A enciclopédia Livre"). Não se pode dizer que o artigo da wikipédia sobre si mesmo não existe, ou que não é notável o bastante, já que ao considerar a sua existência e torná-la assunto para debate, inquérito científico e confirmação de acordo com a disponível realidade, tornamos imediatamente imperativo que a sua existência ganhe atenção especializada e esclarecimento discursivo. A forma mais adequada deste esclarecimento é ele mesmo (i.e. o próprio artigo). Ele é notavelmente o único artigo que não depende de fontes externas confiáveis, já que toda a sua fundamentação é emanada das forças assertivas da própria Wikipédia². Se o corpo de editores da Wikipédia decidir descartar o artigo como uma piada ou truque não-tão-espertinho-assim, essa decisão e sua subsequente reverberações nas suas páginas internas de discussão apenas confirmarão adiante a notabilidade do artigo (assim como sua necessidade enciclopédica) com os fogos "ontologicamente confirmatórios da controvérsia". A tentativa de corrigir a linguagem e postura descritiva do artigo ao dar um passo epistemológico pra trás (ou 'zoom-out') de forma a descrever não o artigo em si mas o fato dele ter sido feito faria com que o artigo deixasse de ser sobre si mesmo e passasse a ser sobre uma controvérsia enciclopédica, o que faria com que ele se auto-destruísse imediatamente. Isso daria início a uma discussão automática sobre a Ética e Prudência enciclopédica cuja inevitável conclusão seria pela restauração do artigo no seu estado inicial. Ver também: Die Schraube an der hinteren linken Bremsbacke am Fahrrad von Ulrich Fuchs Inclusionism Lists of lists On Exactitude in Science
História - outro divertimento Eles mal haviam chegado na festa e ele já queria ir embora, obviamente queria ir embora, suas expressões faciais muito mal contorcidas na tentativa pouco convincente de parecer que estava interessado em qualquer elemento daquela situação, qualquer daqueles salgadinhos e pessoas com seus assuntos e arranjos momentâneos dos seus rostos e franjas. Ela estava claramente irritada com o desinteresse maleducado dele, e redobrava seus já consideráveis esforços em ser simpática com todo mundo e atender à atenção de todos presentes, parecendo quase histérica na sua educação e interesse em tudo que se passava, seus braços com pulseiras balançando audivelmente, rindo de piadas ditas do outro lado da sala e arregalando os olhos com seu interesse onívoro e levemente perturbador numa opinião tão casual e descompromissada sobre algo bem tolo (a Martha Suplicy, digamos). No elevador indo embora ela tornou a sua irritação muito óbvia para ele, mas ele mesmo assim não notou, ainda imerso num jogo no seu celular onde ele tinha que coordenar ondas de pássaros migradores de forma a arranjar desenhos complexos em pleno voo. Era uma atividade bastante demandante, que frequentemente envolvia o risco de mais de um dedo na tela e deixava seu rosto quase tragicamente preocupado. Ela decidiu (não da forma racional e sistemática que eu sugiro com o verbo ‘decidiu’) tomar um curso mais drástico e dramático, e disse - com uma dicção que lhe pareceu falsa, de novela - que não aguentava mais aquela merda de inadequação e grosseria dele, não aguentava mais o tanto que ele não se esforçava minimamente pra ter um convívio decente com as pessoas, que não aguentaria aquilo por mais nenhum segundo. Mas ela aguentou, sim, por mais quatro anos. No quinto, transou com um homem alto de mãos geladas com quem ela tinha aula de desenho numa casa dividida por quatro artistas diversamente carecas no Lago Norte. Esse ato foi compreendido por ela mesma dentro da narrativa redemunhada e tortuosa que ela fazia da própria vida como um ato bombástico, extremo e necessário na direção de uma resolução satisfatória para diversos dramas interminavelmente sustentados da sua relação com Ele. Ela enunciava mentalmente variações pouco sofisticadas dessa percepção enquanto as coxas também geladas do cara alto batiam nas suas próprias coxas e faziam o único barulho ostensivo denunciatório daquele ato que eles estavam, aparentemente, fazendo. Ela durante o negócio conseguindo ainda ouvir o professor falando lá embaixo de como sugerir profundidade sem ter de utilizar truques de perspectiva óbvios demais e ver lá fora uma piscina com água provavelmente tepida e uma mangueira dentro e algumas poucas folhas secas molhadas boiando e se mexendo devagarinho. Era muito estranho estar traindo seu namorado assim, de tarde, o quarto tão quente, sem nem poder fazer muito barulho, com um cara de mãos tão geladas. Chegando em casa ela percebeu que nada havia mudado, que ela nem estava tensa e que nenhuma resolução de nada havia se desenhado. Ele estava no computador reclamando porque havia baixado episódios de um seriado que gosta mas o formato do arquivo tava dando problema e ele não conseguia assisti-los. Exceto que justamente essa teimosia do mundo de fingir que nada havia contecido começou a torná-la tensa, e ela finalmente estoura logo depois de ir ao banheiro e lavar as mãos, chora e conta tudo que havia se passado num tom oficioso, como quem faz um anúncio oficialmente delegado numa coletiva de imprensa, como quem fala de um fato público e impessoal. Ele não reagiu, continuou tentando converter o arquivo, conseguindo só depois de meia hora. Assistiu a três episódios do seriado, cuja nova temporada lhe parecia inferior à primeira. Bebeu um garrafa de dois litros de guaraná diet quase toda. De madrugada, ele a acordou perguntando qual seria o nome do homem alto de mãos geladas. Ela disse que Rubens Vieira. Ele repetiu o nome quatro vezes como se entre aspas, cada vez mais irônico, a ultima versão soando completamente inaceitável. Ele se levantou e foi ao computador, procurou o seu perfil na internet. Comentou que ele era feio e que ele não sabia construir uma versão aceitável de si mesmo em mídias sociais. Que seu uso de todas as plataformas denunciava uma ingenuidade retórica extraordinária e uma maneira muito banal de se portar diante dos movimentos midiáticos e espirituais do mundo. Ela meio que concordava, mas não falou nada. Os dois (ele no computador e ela deitada na cama com a cabeça apoiada no braço esquerdo) assistiram juntos trinta e cinco fotos de Rubens Vieiras em diversas agremiações sociais. Num churrasco, num show de alguma bandinha, no estacionamento de um supermercado, num festival de teatro. No dia seguinte, eles viram um filme muito engraçado e comeram um negócio muito gostoso feito com pesto, confundiram aquilo com o bem estar profundo e sedimentado de uma vida viável. Eles ficam juntos mais quatorze anos, durante os quais eles respondem várias vezes que não, não tem filhos, jantam mais de oitenta vezes num mesmo restaurante italiano perto de casa de que nem gostam muito, trocam de número de celular quatro vezes, participam de maneira numericamente irrelevante na economia e na sociedade como um todo, trocam brevemente de corpo através de uma intervenção mística inexplicável com deliciosas consequências cômicas e ganham um carro zero numa promoção do jornal, até que um dia eles se perdem um do o outro no shopping e acabam retornando pra casa com parceiros diferentes. Ela com uma jornalista muito baixinha e engraçada pernambucana, e ele com uma senhor que narra jogos fictícios do Botafogo enquanto toma banho. O Brasil enfim se livra das amarras da corrupção e se torna uma grande potência mundial.

Monday, August 05, 2013

O Balão,
Donald Barthelme
(vo: The Balloon, em: Unspeakable Practices, Unnatural Acts, 1968)

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O Balão, começando num ponto na rua Quatorze, cuja exata locação eu não posso revelar, expandiu todo em direção ao norte uma noite, enquanto as pessoas estavam dormindo, até alcançar o Parque. Ali, eu o parei; de manhã cedo as bordas mais ao norte pendiam sobre o Plaza; o movimento pendendo livre era frívolo e gentil. Mas experimentando uma irritação leve ao parar, mesmo que para proteger as árvores, e vendo nenhuma razão para que o balão não pudesse expandir pra cima, sobre as partes da cidade que ele já estava cobrindo, até o “espaço aéreo” a ser encontrado lá, eu pedi aos engenheiros que cuidassem disso. Essa expansão ocorreu ao longo da manhã, um suspirar leve imperceptível de gás através das válvulas. O balão então cobriu quarenta e cinco blocos norte-sul e uma área irregular leste-oeste, chegando a seis blocos atravessando a cidade em qualquer dos lados da avenida, em alguns lugares. Essa era a situação, então.
Mas é errado falar de “situações”, implicando conjuntos de circunstâncias levando a alguma resolução, algum escape de tensão; não haviam situações, apenas o balão pendurado lá - cinzas e marrons pesados mudos na sua maior parte, contrastando com amarelos leves e avelã. Uma falta deliberada de acabamento, melhorado por instalação habilidosa, dava aa superfície uma qualidade rude, esquecida; pesos deslizando por dentro, cuidadosamente ajustados, ancoravam a massa grande, multiforme em vários pontos. Agora nós tivemos uma enchente de ideias originais em todas mídias, trabalhos de beleza singular tanto quanto marcas significativas na história da inflação, mas naquele momento tinha apenas aquele balão, concreto particular, pendurado lá.
Tiveram reações. Algumas pessoas acharam o balão “interessante”. Como resposta isso parecia inadequado aa imensidade do balão, a brusquidão de sua aparência sobre a cidade; por outro lado, na ausência de histeria ou outra ansiedade socialmente induzida, deve ser julgada como calma, “madura”. Havia uma certa quantidade de argumentação inicial sobre o “sentido” do balão, isso arrefeceu, porque aprendemos a não insistir em significados, e eles são hoje até raramente procurados , exceto em casos envolvendo os fenômenos mais simples, mais seguros. Havia-se concordado que já que o sentido do balão não podia jamais ser sabido absolutamente, discussões extensas seriam a troco de nada, ou menos propositadas que as atividades daqueles que, por exemplo, penduravam lanternas de papel verdes e azuis do lado quente e cinza de baixo, em algumas ruas, ou aproveitavam a ocasião para escrever mensagens na sua superfície, anunciando a sua disponibilidade para a performance de atos inaturais, ou a disponibilidade de conhecidos.
Crianças ousadas pulavam, especialmente naqueles pontos onde o balão flutuava perto de um prédio, de modo que o intervalo entre balão e prédio fosse uma questão de poucos centímetros, ou pontos onde o balão de fato fazia contato, exercendo uma pressão bem de leve contra o lado de um prédio, de modo que balão e prédio pareciam uma unidade. A superfície de cima era estruturada de forma a apresentar uma “paisagem”, pequenos vales tanto quanto ligeiros montinhos, ou acúmulos; uma vez em cima do balão, um passeio era possível, ou até uma viagem, de um lugar pra outro. Havia prazer em ser capaz de correr uma inclinação abaixo, daí a inclinação oposta acima, as duas gentilmente seccionadas, ou em dar um pulo de um lado pro outro. Quicar era possível, por causa da pneumaticidade da superfície, e até cair, se esse era o seu desejo. Que todos esses movimentos variados, tanto quanto outros, estivessem dentro de suas possibilidades, ao experimentar o lado de “cima” do balão, era extremamente excitante para crianças, acostumados com a pele plana, dura da cidade. Mas o propósito do balão não era divertir crianças.
Também o número de gente, crianças e adultos, que tiraram vantagem das oportunidades descritas não era tão largo quanto poderia ter sido: uma certa timidez, falta de confiança no balão, era vista. Havia, ainda mais, alguma hostilidade. Porque havíamos escondido as bombas, que alimentavam hélio pro seu interior, e porque a superfície era tão vasta que as autoridades não conseguiam determinar o ponto de entrada - isto é, o ponto no qual o gás era injetado - um grau de frustração era evidenciado por aqueles oficiais da cidade em cujas províncias esse tipo de manifestação geralmente caía. A aparente falta de propósito do balão era envergonhante (assim como era o mero fato dele estar “lá”). Tivéssemos pintado, em letras grandes, “TESTES DE LABORATÓRIOS PROVAM” ou “18% MAIS EFETIVO” nos lados do balão, essa dificuldade teria sido evitada. Mas eu não consegui tolerar fazer isso. No todo, esses oficiais eram notavelmente tolerantes, considerando as dimensões da anomalia, essa tolerância sendo o resultado de, primeiro, testes secretos sendo conduzidos a noite que os convenceram de que pouco ou nada poderia ser feito na direção de remover ou destruir o balão, e, segundo, um calor público que surgiu (não descolorido de toques da hostilidade já mencionada) em direção ao balão, de cidadões normais.
Como um único balão pode representar uma vida inteira de pensar sobre balões, então cada cidadão expressava, na atitude que escolhia, um complexo de atitudes. Um homem podia considerar que o balão tinha a ver com a noção arruinava, como na frase O grande balão arruinava o que de outra forma seria o céu claro e radiante de Manhattan. Isto é, o balão era, na visão desse homem, uma impostura, algo inferior ao céu que estava lá anteriormente, algo interposto entre as pessoas e o seu “céu”. Mas na realidade era janeiro, o céu tava escuro e feio; não era um céu para o qual dava de olhar pra cima, deitado nas suas costas na rua, com prazer, a não ser que prazer, pra você, procedesse de ter sido ameaçado, de ter sido mal utilizado. E o lado de baixo do balão era um prazer de se olhar, tínhamos cuidado disso, cinzas e marrons mudos na maior parte, contrastado com avelã e amarelos leves, esquecidos. Então, enquanto esse homem pensava arruinava, ainda havia uma mistura de cognição prazerosa no seu pensamento, brigando com a percepcão original.
Outro homem, por outro lado, poderia ver o balão como se fosse parte de um sistema de recompensas não esperadas, como quando um empregador entra e diz, “Aqui, Henry, tome esse pacote de dinheiro que eu embrulhei pra você, porque você esteve se saindo tão bem nesse negócio aqui, e eu admiro muito a maneira com a qual você machuca as tulipas, sem cujos machucados o nosso departamento não seria um sucesso, ou pelo menos não o sucesso que ele é.” Para esse homem o balão pode ser uma experiência “músculo e ginga” brilhantemente heróica, mesmo que uma experiência mal compreendida.
Outro homem pode dizer “Sem o exemplo de ------, é duvidoso que ------ existiria hoje na sua forma presente”, e encontrar muitos pra concordar com ele, ou pra discordar dele. Ideias de “inchaço” e “flutuagem” foram introduzidas, assim como conceitos de sonho e responsabilidade. Outros engajaram-se em fatasias marcadamente detalhadas tendo a ver com um desejo ou de se perder no balão, ou de engoli-lo. O caráter privado desses desejos, ou suas origens, profundamente enterradas e desconhecidas, era tal que deles não se falava, no entanto há evidência de que eles eram bem comuns. Era também argumentado que o que era importante era o que você sentia quando ficava de pé debaixo do balão, algumas pessoas diziam que se sentiam protegidas, aquecidas, como nunca antes, enquanto inimigos do balão sentiam, ou reportavam sentir, constrangimento, um sentimento “pesado”.
Opinião crítica se dividia:

“enchentes monstruosas”
“harpa”
XXXXXX “ certos contrastes com porções mais escuras”
“alegria interna”
“cantos largos, quadrados”
“eleticismo conservador que até hoje tem governado
o design de balões”

:::::::::::::::::: “vigor anormal”

“trechos quentes, preguiçosos”
“Terá a unidade sido sacrificada por uma qualidade esparramada?”
“Quelle catastrophe!”
“laricando”

As pessoas começaram, de uma maneira curiosa, a se localizar em relação a aspectos do balão: “Eu estarei naquele lugar onde ele mergulha abaixo na rua Quarenta e Sete quase até a calçada, perto da Casa Alamo Chile,” ou, “Porque não vamos ficar no topo, pegar um ar, e talvez andar um pouco, onde ele forma uma linha apertada, curvando com a façada da Galeria de Arte Moderna-” Intersecções marginais ofereciam entradas dentro de uma certa duração de tempo, assim como “trechos quentes, preguiçosos” nos quais... Mas é errado falar de “intersecções marginais”, cada intersecção era crucial, nenhuma podia ser ignorada (como se, andando lá, você não pudesse encontrar alguém capaz de virar sua atenção, num relance, de velhos exercícios para novos exercícios, riscos e escalações). Cada intersecção era crucial, encontro de balão e prédio, encontro de balão e homem, encontro de balão e balão.
Era sugerido que o que era admirado sobre o balão era finalmente isso: que ele não era limitado, ou definido. As vezes uma protuberância, bolha, ou sub-seção carregava todo pro leste até o rio num mapa, como visto num quartel-general remoto da luta. Então aquela parte seria, como se diz, jogada de volta, ou se retrairia até novas disposições; a manhã seguinte, aquela parte teria feito outra sortie, ou desaparecido de todo. Essa habilidade do balão de trocar sua forma, de mudar, era muito agradável, especialmente para pessoas cujas vidas eram bem rigidamente padronadas, pessoas para quem mudança, embora desejável, não estava disponível. O balão, durante os vinte e dois dias de sua existência, oferecia a possibilidade, em sua randomicidade, de extravio do senso de si, em contradistinção com a grelha de caminhos precisos, retangulares debaixo dos nossos pés. A quantidade de treinamento especializado atualmente necessária, e a consequente desejabilidade de comprometimentos de longo prazo, foram ocasionados pela importância constantemente crescente de maquinaria complexa, em virtualmente todo tipo de operação; enquanto essa tendência cresce, mais e mais gente vai se virar, em inadequação deslumbrada, em direção a soluções para as quais o balão pode ficar como protótipo, ou “rascunho tosco”.
 Eu encontrei você debaixo do balão, em ocasião do seu retorno da Noruega; você perguntou se era meu, eu disse que era. O balão, eu disse, é uma revelação autobiográfica espontânea , tendo a ver com o desconforto que eu senti na sua ausência, e com privação sexual, mas agora que a sua visita ao Bergen foi terminada, não é mais necessário ou apropriado. Remoção do balão era fácil, caminhões trailer carregaram pra longe a fábrica esvaziada, que agora é armazenada em West Virginia, esperando algum outro tempo de infelicidade, algum tempo, talvez, em que estivermos bravos um com o outro.